terça-feira, 16 de junho de 2009

Cultura Cívica

CULTURA CÍVICA:
UMA VISÃO JURÍDICO-SÓCIO-POLÍTICA

Prof. Eduardo Magalhães Junior

Antes de iniciar estas minhas observações sobre a Cultura Cívica sob um prisma jurídico, social e político, quero registrar o meu mais sincero agradecimento à Dra. Karla Padilha pela gentileza do convite e pela confiança no desempenho da tarefa que me foi presenteada.

É com grande satisfação e lisonjeada honra que proponho fazermos juntos um passeio intelectual curto e obviamente, superficial, pelos caminhos e descaminhos do Estado moderno num mundo conturbado onde as leis de mercado de tal forma se afastaram das normas ideais da boa convivência social e humana que chego a temer que no futuro não muito distante sejamos obrigados a apelar para o amedrontador Leviatã Hobbesiano.

Devo confessar de antemão a minha admiração pelo trabalho do Ministério Publico com sua ousada ideologia própria, sua independência organizacional, suas relações com os outros poderes governamentais, assim como com a sociedade e o processo político. Duas características parecem mais evidentes para aqueles como eu que não são estudiosos do Ministério Público: primeiro – sua vasta área de atribuições dentro da esfera civil e, segundo – uma inconfundível independência institucional no que diz respeito a suas relações com outros ramos do Poder. No passado recente vimos agigantar-se cada vez mais a atuação do Ministério Público contra a corrupção e o crime organizado. É destacada também a atuação do Ministério Público na proteção dos direitos públicos coletivos tais como o meio ambiente, relação com consumidores, a herança histórica e cultural, os direitos da criança e do adolescente, dos idosos, dos portadores de deficiência física, o respeito à propriedade pública e o controle de políticas publicas.

Em realidade, quando penso dos District e US Attorneys, dos Estados Unidos, do Ministère Public, da França, do Ministério Fiscal, da Espanha, do Pubblico Ministero, da Itália, do Crown Prosecution Service, da Inglaterra, do Public Prosecution Service, do Canadá e do também Ministério Público de Portugal, da Argentina, do Chile e de tantos outros países da América Latina, orgulho-me de constatar que o nosso, o valoroso Ministério Público brasileiro, não tem nada a dever a essas instituições estrangeiras, muitas delas de secular experiência.

Mas o Ministério Público será tema de tantas conferências no decorrer deste Encontro Nacional, que, data vênia, retorno às minhas observações e análise da Cultura Cívica brasileira...

O meu interesse pelo Estado surgiu de forma natural nas minhas primeiras aulas de Teoria Geral do Estado, na velha Faculdade de Direito de Sergipe, adquiriram estatura e perplexidade nas minhas estadas nos Estados Unidos onde estudei e lecionei por mais de 15 anos, e na Espanha, na Universidade de Salamanca, onde passei um dos períodos mais ricos de minha vida intelectual, e finalmente tomaram corpo e forma quando me tornei professor de Teoria Geral do Estado e Direto Constitucional, na Faculdade de Direito do CESMAC.


Meu primeiro contato com o Estado, este ente abstrato e real que tanto fascina os estudiosos, ocorreu no meu primeiro ano de Direito da renomada e famosa Faculdade de Direito de Sergipe. Mesmo hoje, com um novo século separando aquela da minha experiência atual ainda ressoam no meu inconsciente certas premissas quanto ao Direito e quanto a linhas de investigação que têm me acompanhado por todo o meu itinerário professoral. Lembro-me bem do fanático fascínio exercido por Tobias Barreto e a forte influência do pensamento alemão entre os cultores do Direito que formavam o excelente corpo docente daquela destacada Instituição. O Direito alagoano também está eivado da presença do Direito Germânico, no passado na figura exponencial de Pontes de Miranda e no presente, na profunda cultura jurídica do Conselheiro Nacional Paulo Lobo.

Seja germânico, anglo-saxônico, romano, antigo, moderno, o estudo do Direito Público, em geral, e do Direito Constitucional, em particular, encerra e pressupõe a noção de Estado. Na forma mais simplificada possível, eu defendo que quando alguém diz Direito Público quer dizer Direito do Estado, ou seja, o Direito aplicado a todas as relações humanas ou sociais nas quais o Estado entra diretamente na cena. O Direito Constitucional é a parte do Direito Público que trata das regras das instituições cujo conjunto forma a Constituição do Estado. Portanto, não se pode abordar o estudo do Direito Público, ou seja, da Constituição do Estado, sem cair imediatamente no objeto da Teoria Geral do Estado, que se resume na seguinte pergunta: Que é um Estado? (de forma concreta) ou Que é o Estado? (de forma abstrata).

Não importa como seja ou qual seja o enfoque, a origem, a evolução, as formações ou organizações políticas que recebem o nome de Estado se reduzem a três elementos constitutivos básicos:

1. Em cada Estado há um determinado número de pessoas. Este número de elementos humanos pode ser grande ou pequeno desde que tenha conseguido, de fato (e de direito), formar um corpo político autônomo, é dizer, diferente de outros grupos estatais vizinhos. Por esse ângulo, o Estado é, antes de tudo, uma comunidade humana. É uma forma de agrupamento social. O que caracteriza este tipo de comunidade é que se trata de uma comunidade pública que se sobrepõe a todas as outras comunidades ou agrupamentos particulares de ordem doméstica ou de interesse privado. Diferentemente dos conglomerados humanos originais do Estado da Natureza que viviam em pequenos grupos sociais, famílias, tribos, isolados uns dos outros, as comunidades estatais se formaram englobando todos os indivíduos que viviam num determinado território em uma corporação única, formada tendo por base o interesse geral, o interesse comum que une, apesar de todas as diferenças que os separam, todos os elementos humanos que vivem juntos num mesmo território, e que termina por produzir um povo, uma nação. A Nação poder-se-ia dizer, é, pois, o conjunto de homens e mulheres de todas as idades que formam o elemento humano do Estado. Considerados individualmente, a Nação é composta de cidadãos e cidadãs, termo que designa exatamente o vínculo social que, acima de todas as relações particulares, reúne todos os seus membros num corpo único de sociedade pública.

Somente à guisa de completar o raciocínio quanto aos elementos constitutivos do Estado, relembraria o seu segundo elemento essencial:

2. O Território. Dispensa explicação maior ou mais profunda entender e aceitar que dificilmente haveria uma vinculação nacional consistente sem que houvesse uma convivência permanente sobre territórios comuns. Sem querer gerar debates ou discussões intelectuais mais cuidadosas, comungo da idéia da maioria dos estudiosos do Estado de que o território é um elemento essencial e indispensável sem o qual o Estado não poderia exercer a sua potestade, o seu Poder. Basta pensar em termos de cidadãos nacionais que vivem em outros países diferentes do seu. Se bem que o Estado tenha o direito de exercer autoridade sobre esses nacionais essa autoridade só se torna eficaz quando o nacional volta ao seu território. Em contrapartida, dentro do seu território, o Poder do Estando é exercido sobre todos os indivíduos tanto nacionais, como estrangeiros.

3. Finalmente, e acima dos outros dois elementos essenciais, o que constitui um Estado é o surgimento, no seio da Nação, de uma potestade, de um Poder público que é exercido com força de coação sobre todos os indivíduos que formam a sua população. Cabe ao Poder do Estado, na sua capacidade coercitiva, o Direito de impor-se ao indivíduo com força irresistível. Este Poder de coação do Estado, que para alguns teóricos é denominado Governo, para outros Soberania, identifica a vontade coercitiva e de domínio do Estado que exerce a sua autoridade ora através de preceitos imperativos e obrigatórios, outras vezes no sentido de obrigar a que esses preceitos sejam obedecidos e executados.

Dois desses elementos essenciais, a população e o Governo, serão objeto de maiores considerações ao tentarmos entender o que ocorre no Brasil neste momento em que o Estado parece passar por dificuldades que não podemos identificar ou definir com muita clareza e de forma totalmente convincente.

Eu tenho certeza absoluta de que não há um cidadão brasileiro minimamente informado que não esteja estupefato diante dos resultados das pesquisas de opinião que apontam um crescimento gradual e ininterrupto da preferência do Presidente Lula como candidato a presidente nas eleições de outubro de 2006 a partir de junho de 2005. Que poder extraordinário tem o Presidente Lula que diante da queda de todos os membros do seu staff mais próximos continua imune ao enlameamento que atingiu a todos esses companheiros da história petista? Será que é o poder de convencimento do Lula ou alguma manifestação de novo comportamento do eleitorado brasileiro que ainda não conseguimos identificar?

Partindo da idéia sugerida na identificação do elemento essencial mais importante do Estado, o Poder (Governo, Potestade, Soberania) de que o que caracteriza esse elemento é a sua força coercitiva, o seu poder de coação, eu ousaria submeter ao inteligente escrutínio intelectual desta seleta platéia algumas observações que deverão conduzir, espero, a uma melhor interpretação do fenômeno blindagem do Lula.

O brilhante Cientista Político Wanderley Guilherme dos Santos, Pesquisador do Laboratório de Estudos Experimentais, da UFRJ, escreveu há muitos anos atrás que “Toda política governamental traz embutida uma expectativa de comportamento da comunidade”. Uma política econômica do governo supõe certo tipo de comportamento. Quando o governo aumenta juros pressupõe que haverá menos empréstimos, menor atividade econômica e financeira e consequentemente maiores possibilidades de controlar a subida de preços e a inflação. A realidade nos ensina, contudo, que o sucesso de uma política governamental depende não só de sua qualidade técnica ou utilitária mas de sua adequação à efetiva distribuição de atitudes e valores e à maneira como é apreendida pela sociedade. O que leva políticas públicas a fracassos ou sucessos são as cadeias de expectativas que se frustram ou se reforçam reciprocamente.

Na interpretação de Wanderley Guilherme dos Santos, a eficácia das políticas governamentais encontra-se em estrita dependência do estado de cultura cívica do país. E a cultura cívica de um país, de qualquer país, ainda que de certa forma estável, oscila de acordo com forças vivas muitas vezes não totalmente identificáveis que geralmente levam a alteração de políticas de governo.

O que se deve entender por cultura cívica? Entendo por cultura cívica o sistema de crenças, de credos, de expectativas, angústias, esperanças, medos compartilhados pela população quanto à própria sociedade em que vive, e quanto ao catálogo de direitos e deveres que cada um acredita ser o seu. Eu realço a idéia de “direitos e deveres que cada um acredita ser o seu”. A intensidade e a extensão como essa cultura cívica é compartilhada varia de acordo com vários fatores tais como nível de renda, escolaridade, idade e ocupação. Mesmo nas pessoas que apresentam as mesmas características de renda, escolaridade, idade e ocupação no Brasil não é possível identificar comportamentos cívicos compartilhados como, por exemplo, o fanatismo islâmico, a reverência à família real, dos ingleses, a estratificação de classes da Índia, etc. Talvez, quem sabe, a identificação nacional com a Seleção de Futebol.

A cultura cívica indica o conjunto de expectativas que os indivíduos criam quanto ao governo, quanto aos seus concidadãos e quanto a si próprios. Como a cultura cívica é um sentimento compartilhado, no caso da opção pelo Presidente Lula, é óbvio, que esse sentimento compartilhado tem uma razão de ser. Não há efeito sem causa. Sem que houvesse nenhum fato novo entre julho de 2005 e junho de 2006 que demonstrasse a inocência de Lula no caso do Mensalão, do Valerioduto, dos crimes das prefeituras do PT paulista, da quebra de sigilo bancário de investigados, no tráfico de influência do Vavá e do Lulinha, nos pagamentos das contas da Família de Lula pelo Sr. Paulo Okamoto, fica claro que apenas o acionamento de algum tipo de mecanismo da cultura cívica poderia ser responsável por tamanha tolerância por parte da grande maioria dos eleitores brasileiros
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Pesquisas levadas avante por renomados cientistas sociais confirmam a existência de um eleitorado pobre constituído por mais de 72% de eleitores cuja renda é de até 2 salários mínimos. Só para ficar bem claro, 72 % de todos os eleitores do Brasil ganham R$700,00 ou menos. A conclusão à que se pode chegar está muito clara: trata-se de um eleitorado pobre. Um eleitorado pobre e massificado cujos valores e ética já não coincidem com os valores e ética da classe média dominante no país. Um eleitorado massificado detentor de novos valores que vê na figura do Presidente Lula um dos seus, capaz de levá-los a uma vida melhor, à Terra Prometida do leite e do mel, e por ser um dos seus, imune aos atos de corrupção atribuídos aos seus auxiliares mais imediatos...

A democracia representativa burguesa que emana das Revoluções Francesa e Americana de fins do Século XVIII está assentada sobre quatro princípios basilares: a igualdade, o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à busca da felicidade. A cultura cívica brasileira que predomina neste momento histórico do nosso País tem como característica peculiarmente interessante uma sensação de felicidade e sucesso alcançado. Como outra característica da cultura cívica brasileira é uma fé ou dependência cega no hic et nunc, no aqui e agora, a efêmera satisfação de alguns poucos objetivos alcançados leva a um crescente contentamento e felicidade que por razões da incrível capacidade de comunicação pessoal, especialmente com as classes menos favorecidas, do Presidente Lula, são atribuídas ao desempenho do Presidente à frente dos destinos do Brasil. Como muitas destas crenças compartilhadas são temporárias e logo oscilam em outra direção, neste momento, tudo que há de bom no Brasil, a disponibilidade de celulares, uma cesta básica cujo preço é mais baixo agora do que era há 12 meses atrás, a sofisticação de poder abrir uma conta bancária sem grandes dificuldades, a sensação de segurança para 11 milhões de famílias beneficiadas com o Bolsa-Família, a merenda garantida para seus filhos na escola, e tantas outras ações todas elas devidamente assenhoreadas pelo Presidente Lula, garantem não só a preferência pelo Lula nas eleições de outubro, mas erigem uma gigantesca barreira de proteção que separa o Presidente de todos os males de que possa vir a ser acusado. “É pura inveja”. “É um conflito de classes”. “ È a classe historicamente predominante que não aceita o surgimento de uma nova maioria eleitoral” esbraveja o Presidente. Vença o Brasil a Copa do Mundo e não haverá Heloisa Helena, nem Garotinho, nem Geraldo Alkmin até mesmo juntos para sequer ameaçarem de longe a vitória do Nosso Guia. Perca o Brasil e a culpa será de um Ronaldo gordo, de um Parreira retranqueiro e de tantas outras justificativas que se podem criar para explicar uma derrota no futebol. O que não acontecerá, com certeza, é a derrota do Brasil ser atribuída a um Lula-pé-frio, ou resultar de um atrito bobo do Presidente com um Ronaldo realmente gordo, apático e de vigor físico comprometido.

O que estamos testemunhando é um caso típico de mudanças sociais significativas que alteram o sistema de valores publicamente compartilhados. Tome-se, por exemplo, a invasão/ocupação/destruição do Salão Verde da Câmara dos Deputados. Dados levantados por Fernando Rodrigues, da Folha de São Paulo, dão conta de que a esmagadora maioria dos eleitores que se encontram nessa faixa do eleitorado massificado (mais de 70% cujos salários vão até $700,00) não só entende e aceita os motivos que levaram o MSLT a agir de tal forma violenta, mas chegam a acreditar que muito pior do que a ação e os prejuízos causados pelo MLST que são muito menos graves e materialmente menos danosos do que a corrupção, os pagamentos do mensalão e outras falcatruas que grassam no Congresso Nacional, como já muito bem comprovado em denúncia do Ministério Público Federal.

Em geral, as mudanças que envolvem deslocamento social, ocorrem de forma lenta. Isso faz com que os comportamentos que estão presentes na cultura cívica em um determinado momento ocorram de forma quase imperceptível. Num país em crise econômica crônica, como tem sido o caso do Brasil, nos últimos anos, a sensação que o Presidente Lula criou de que o País vive num mundo de maravilhas gera essa sensação de satisfação que pode ser corroborada por pequenas melhoras materiais que passam a ter um impacto muito positivo uma vez que a nossa cultura cívica não contempla situações no futuro. Não há no Brasil grandes preocupações com o futuro desconhecido... A ausência do que os sociólogos chamam de taxa de incerteza que induz à ansiedade e insegurança, neste momento parece não existir no Brasil. E no futuro será cada vez menor essa taxa de incerteza para isso bastando uma vitória de Lula em outubro, parecem acreditar os eleitores do Presidente.

Essa nova euforia dos cidadãos que comungam dos ideais do eleitorado massificado poderá ser submetida a um teste de validade e até de existência real (em vez de indícios de existência) bastando para isso que uma característica, a anomia, já de há muito identificada nos países em dificuldades econômicas e que passam pelo lento processo de mudanças sociais seja detectada. A imprevisibilidade do mundo social gera uma sensação de impotência nos indivíduos na exata medida em que a circunstância de cada um é cada vez mais independente do comportamento individual. Ou seja, é perfeitamente possível para uma pessoa submeter-se completamente às normas consagradas e, no entanto, receber de volta o oposto do que se julga merecedor. Ser eficiente e assíduo num emprego, por exemplo, não garante a estabilidade no cargo.

A impotência individual em ajustar-se ao mundo deriva do reconhecimento de que a retribuição da sociedade, dos outros, independe da contribuição do individuo.

De que maneira a tragédia e a impunidade do Mensalão poderão contribuir de forma negativa para o futuro do Brasil?

O Professor Wanderley Guilherme já sugeria há vinte anos atrás que “A crescente certeza da ineficácia das normas gerais como determinantes da conduta individual, associada à ignorância sobre os comportamentos possíveis, instauram a dinâmica de uma descrença e desconfiança generalizadas, abarcando, inclusive, pessoas e instituições cuja destinação é a preservação das normas (polícia e judiciário, por exemplo”).

A erosão das normas, o desrespeito às normas de convivência, destitui a arena pública de qualquer caráter simbólico positivo. Que diferença faz obedecer ou não as regras emanadas do poder público? A erosão das normas faz com que os indivíduos se isolem e passem a não contar senão consigo mesmo na luta contra a imprevisibilidade do mundo social hostil. É como se a sociedade retornasse ao Estado da Natureza hobbesiano onde a vida é curta, solitária, sórdida e brutal. Onde inexistem normas universalmente aceitas. Um Estado da Natureza sem lei nem ordem, onde o homem é o lobo do homem em processo perverso de retroalimentação: a desconfiança gera o isolacionismo que provoca desconfiança e hostilidade em outros, confirmando a desconfiança e o isolacionismo dos primeiros.

O Estado da Natureza típico de sociedades em transição presentemente acelerada, como a nossa, caracteriza-se pela inexistência de um código de conduta universalmente aceito, e por isso mesmo, eficaz na redução da taxa de imprevisibilidade do mundo e na garantia da reciprocidade entre contribuição individual e retribuição social. Nessas circunstâncias, tendem a prevalecer os códigos privados de comportamentos, os perigosíssimos códigos individuais, compartilhados apenas por pequenos segmentos da sociedade maior. Surgem daí as subculturas do crime, as minissociadades das drogas, os anéis de corrupção, os sindicatos do crime. O universo social dos códigos coletivos fragmenta-se em microagrupamentos que passam a definir para si próprios o que é certo e o que é errado, o que é justo e o que é injusto. Constituindo-se de forma isolada e estanque não há entre essas microssociadades uma linguagem, um direito comum. Todas têm o seu “código de honra”, cada uma inteiramente alheia aos códigos das demais. Neste cenário o espaço público social se reduz ao conflito. Para ser eficaz, o poder político tem que se afirmar como matriz de valores e paradigma de conduta. Transições sociais aceleradas sempre são acompanhadas de desordem de todo tipo em função da qualidade do exercício do poder e das normas que pautam esse exercício.

Nas condições de quase Estado da Natureza que vive o Brasil em algumas regiões, o poder político tanto pode contribuir para gerar os valores que restabeleçam a solidariedade e a confiança social, reduzindo os conflitos e a barbárie a níveis suportáveis, como ao contrário, estimular o abuso e toda e qualquer tentativa de satisfação pessoal, independentemente, do direito. Neste caso, não existe obediência à lei, ineficaz como paradigma de conduta, mas tão somente o temor ao castigo. Não há como desconhecer o impacto social trazido por transformações aceleradas. Suas repercussões são inevitáveis em termos da ansiedade pessoal e da desconfiança generalizada. A intensidade dessas repercussões pode ser agravada ou atenuada exclusivamente pelo grau de responsabilidade que se exerce o poder. Neste sentido, supor que a ordem depende exclusivamente do grau de repressão à desordem, uma vez que desordem neste caso significa precisamente o conflito sem regras entre concepções diferentes da ordem. A pura repressão, apenas confirmará o juízo privado de cada um dos membros dessas minissociedades de que só sobrevive quem consegue impor-se por qualquer meio aos demais. Medite-se um pouco sobre os líderes do PCC e os eternos coronéis do Nordeste do Brasil...

Os códigos individuais são os grandes responsáveis diretos pela corrupção desenfreada que assola o nosso país. A impunidade perpetua e pereniza os códigos individuais. Na situação em que vivemos, a impunidade é função crescente do tempo. No auge da CPI de PC Farias, O Presidente Fernando Collor fez seu tradicional cooper de fim de semana usando uma camiseta branca com a inscrição “O Tempo é o Senhor da Razão”. Fundamentalmente, o que o Presidente estava dizendo era o seguinte “Vamos deixar a poeira baixar”. Para membros do Ministério Público deverá causar justificada preocupação observar que no contrato social brasileiro atual é espantosa e inacreditável a incrível convivência entre a liberdade e freqüência de denúncias e sua quase absoluta ineficácia. Como é de esperar num Estado de Natureza de cultura cívica hobbesiana (ou neo-hobbesiana para usar um termo mais moderno) como o Brasil, as denúncias tendem a cair no vazio, assim como os crimes tendem a cair no esquecimento. Para completar, a leveza da pena é como uma negação à violência do delito. A cada proposta inovadora de combate à impunidade, a denúncia de 19 mensaleiros ao Conselho de Ética da Câmara de Deputados no qual apenas 3 foram punidos, seguem-se episódios de sensacionalismo (as audiências das CPIs na televisão da Câmara e do Senado), promessas de rigor nunca visto e penas nunca infligidas. Com o passar dos dias, após alguns meses, o saldo efetivo na ordem das coisas e de obediência internalizada é praticamente nulo. No Brasil, a punição quase nunca corresponde proporcionalmente à violação cometida. Isso quando a punição está realmente relacionada com o delito. O que prevalece realmente no Brasil é a impunidade, função cada vez maior do tempo.

Ter consciência de que a punição no Brasil é aleatória tanto quanto a pena é errática, ao mesmo tempo em que viola flagrantemente as normas vigentes pode constituir boa estratégia para obter a impunidade, favorece o cultivo de valores privados, e a emergência do comportamento predatório.

Como seria uma cultura cívica predatória? Cultura cívica predatória é o que pode se esperar quando a população é composta por indivíduos que se consideram uns aos outros como irresponsável, acomodado, preguiçoso, esperto, mal-educado, desonesto, ladrão, corrupto etc. Numa cultura cívica predatória como a do Brasil, não é de surpreender que se aceite como perfeitamente normal colocar alguém para guardar um lugar na fila para ganhar tempo, chegar atrasado a compromissos, colar nas provas, estacionar em local proibido, cortar o sinal sem necessidade premente, estacionar o carro em cima da calçada, subornar para conseguir serviços, e proclamar que todos praticam caixa dois o que exime a todos do cometimento de crimes.

Sem o menor desejo de suscitar especulações temerárias, mas tão somente com a intenção de propor um exercício intelectual, confesso ter dificuldade em entender e antecipar como será o Brasil do futuro em caso de vitória, em outubro próximo, do Presidente Lula. Tenho grande receio quanto ao futuro do MST e seus subagrupamentos, como o MSLT. A evidência que temos, inclusive pela presença de núcleos de treinamento de ação de campo instalados em lugares como na minha Universidade Federal de Alagoas, na Fazenda São Luiz, em Viçosa, com a finalidade precípua de preparar especialistas em ocupação de prédios, ações de bloqueio de estradas, saque de caminhões, e coisas como tal, levam á conclusão de que o MST parece ser o braço armado do PT, ou o Exército Vermelho do Presidente Lula. Há evidência também de que esses movimentos são financiados pelo Governo Federal. O MSLT, nos últimos dois anos, recebeu do Governo Federal, mais de quatro milhões de reais através de uma ONG cuja finalidade e legalização junto aos poderes constituídos não ficou muito clara até agora.

O enfraquecimento do PT nas eleições de outubro, antecipa-se que ele deverá ter a quarta bancada na Câmara, atrás de PMDB, PFL e PSDB, implicará na necessidade de acordos e negociações ainda mais ousados por parte do Governo para garantir a governabilidade e aprovar os projetos de interesse do Palácio do Planalto. E já ficou comprovado, inclusive pela denúncia do Procurador Geral da República, que as negociações ilícitas a custo de ouro existiram e que havia uma quadrilha cujo chefe ainda não foi devidamente incriminado (identificado parece que já está). Está comprovado também, pelo trabalho do MP Federal e das CPIs, que não havia limite para o uso de meios, por mais indecorosos, ilegais e ilegítimos que fossem, que garantissem a consecução dos objetivos dos antigos dirigentes do PT.

Mas não nos martirizemos muito sobre essa realidade em potencial. Ela não é inevitável. A Cultura Cívica oscila, o comportamento eleitoral é volátil, e tudo pode acontecer. E, para o bem desse desafortunado e trágico País sem heróis, sem reverência ao passado e sem culto ao futuro, que nos aconteça o melhor.

Obrigado.

(Palestra proferida no Encontro Nacional do Ministério Público Federal realizada em Maceió, em maio de 1986)