segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
O enterro mais bizarro do mundo
O ENTERRO MAIS BIZARRO DO MUNDO
Eduardo Magalhães Junior
Tácito nunca chegou a descobrir porque tinha resolvido dar um passeio pelo Vergel do Lago, naquela manhã despretenciosa de um terça-feira como outra qualquer. No entanto os acontecimentos que se desenrolariam naquelas poucas horas deixariam uma patética marca na sua mente.
Possivelmente não teria havido nada de anormal não fosse pela presença daquele caixão de defunto no meio da rua . E mais ainda, não fosse a presença fisica do Zé Miolo, que garantia que seu amigo morto, o Pedro Marcineiro, não podia mais esperar dentro do caixão.
Quer que eu ajude a botar o caixão dentro de casa!
• Dentro de casa! Home, eu já tive u maió trabaio pá traze ele pra qui e agora o sinhô pregunta si qué butá pra dento as de novo...
• Para quem é o caixão?
• E do Pedo, finado Pedo, Deus proteja sua alma. Morreu onte pur vorta das três hora e inda hoje num apreceu ninguém pra interrá e, o sinhô sabe, ou s’interra logo ou num hai quem agüente.
• O senhor está me dizendo que o seu amigo Pedro Marcineiro está aí dentro desse caixão?
• T. O sinhô qué vê?
• E quando é o enterro?
• Quando é, não, quando era. Era pá saí lá pó cimitero veio às oito hora da manhã e até agora num apareceu ninguém e eu to cum medo...
• E ele não tinha parentes, vizinhos, amigos?
• De ter eu acho que tinha, agora ninguém quer chega perto dele. Ele morreu de duença do peito e aqui todo mundo diz que depois do doente morto é que a duença pega. Eu num sei se pega ou num pega mais eu seio que a gente tem qu'interrá ele.
• Mas, meu senhor, como é que o senhor espera levar este caixão daqui para a Av. Siqueira Campos sem nenhuma ajuda?
• Num sei, mas vou dá um jeito. O home tem que s’interrá. Por que é que o sinhô num ajuda? Deixu carro aqui e nóis dois leva o caixão. Eu garanto que nóis leva.
Tácito sempre se considerou um homem dos mais altos princípios religiosos e
nunca se negou a prestar os seus serviços em prol de causas que considerasse justas e que viessem, de um modo ou de outro a beneficiar a cidade de Maceió. Mas a
situação agora era das mais estranhas.
• Dotô, u sinhô pegue na cabicera e eu pego nos pé e vamu vê se a gente num leva. Ele era um nada. A duença já tinha acabado cum ele. Num pesava nada. Nóis dois leva.
Sem querer e nem sequer considerar as opções, Tácito desceu do caro e se propôs ao mais alto ato de solidariedade humana que já tinha feito em toda sua vida. Todas as atividades de serviços que tinha liderado através do Lions Clube em nada se comparavam com o que ia fazer. Por certo os jornais iriam noticiar
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o fato e ele conseguiria uma boa quilometragem de propaganda gratuita nos jornais. Quem sabe uma TV local decidisse fazer uma reportagem especial. Já pensou se o assunto chegasse ao conhecimento do “Fantástico”? Sua campanha para deputado estadual receberia tambem o impulso de que vem necessitando há vários dias...
• Bom. Vamos tentar. Pode ser que no caminho alguma alma caridosa decida dar uma mãozinha.
Os primeiros 100 metros foram percorridos em poucos minutos. Várias pessoas chegaram à porta, se benzeram, fizeram comentários sobre “o velho que tinha morrido num desastre de carr mas ninguém se ofereceu para ajudar. Depois de quase uma hora tinham chegado à Av. Siqueira Campos. Acontece que a Siqueira Campos estava a quatro qui1métros de distância. A única esperança era que numa via movimentada como a Siqueira Campos alguém parasse para ajudar.
• Doutô, o Pedo num pesa muito se o cabra num tiver qui carregá ele! Cum
as mão qui num me agüento. Vamu rá um bucadinho pá descans Cum
licença da mal palavra, será que num tem um corno que ajude?
• Como é o nome do senhor?
• Pá falar a verdade,eu nem me alembro do meu nome. O nome mesmo é Zé,
José da Silva Santos, mas num tem uma pessoa nu mundo que num me
chame Zé Miolo.
• Pois bem, Zé Miolo, vamos andando porque já é quase meio dia e ainda falta
é muito para o Cemitério e...
• E cum o só quente o pobe do Pedo Marcinero num agüenta.
• Quem não agüenta somos nós. Para o Pedro agora só existe o mundo
melhor.
• U sinhô é adevogado?
• Não. Sou professor universitário. ,
• Um professsô universitaro e um miserave que num sabe nem assiná o nome
ajudando um pobe morto...
O sol estava cada vez mais quente e o Tácito já podia sentir aquele odor forte de carne em decomposição. Se o transporte do morto era dificil pelo peso, seria impossivel com o mau cheiro.
• Zé Miolo, não vamos perder tempo mais não. Vamos fazer um esforço final e vamos levar o Pedro para o Cemitério.
Os primeiros metros outra vez foram muito fáceis. Iam levando o morto, de lado, e como tivessem que sair do meio da rua de vez em quando para passar um táxi,um caminhão ou um ônibus estavam em realidade fazendo progresso.
A altura do Estádio Rei Pelé, surgiu o tão esperando bom samaritano.
• Pra onde é que vocês vão com esse caixão?
• Caixão, não; nós vamos enterrar um senhor que morreu hoje de madrugada.
• Morreu de quê?
• Ataque do coração. Nunca teve uma dor de cabeça na vida. Hoje lá para as cinco horas começou a reclamar duma dor no braço direito, a mulher deu uma garapa forte e chá de limão. As cinco e meia estava morto.
• E por que não tem ninguém pra enterrar o homem?
• Si o sinhô subesse num ficava nem pur perto...
• O choque para a família e para os poucos amigos foi tão grande que ninguém quis vir ao enterro.
• Eu não sei como vai ser, mas quero ajudar, se não vocês não chegam nunca no cemitério. E assim no sol da meidia, mesmo um camarada morto hoje de manhã a carne já começa a arder.
Pode estacionar o táxi ai e nós três levamos o caixão.
Não; eu quero é botar a cabeça do caixão no para-choque trazeiro do táxi e vocês dois pegam nos pés. Eu garanto que é muito mais fái1. Mais fácil realmente era. O problema era que o bom samaritano não podia dirigir o carro muito devagar e os pobres do Tácito e do Zé Miolo que já estavam cansados, quase que não podiam manter o ritmo do Fusca; mas quando eles pensavam que teriam que levar o caixão sozinhos se enchiam de um novo espírito e continuavam a correr.
• Como é que vai a coisa aí? Tá indo bem?
1 Ta. Bom. Pode. Ir.
• Quer que pare pra descansar?
• Não. Num. Pare. Não. Pode. Ir.
Naquele momento o táxi que devia ir desenvolvendo dez quilômetros por hora passou por um buraco. A cabeça do caixão saiu do para-choque batendo no chão com um barulho horrível.
Tácito e Zé Miolo que não conseguiram parar imediatamente continuaram a correr mais uns passos porém sem soltarem o caixão. Quando tudo voltou ao normal o caxão estava em pé e de cabeça para baixo, o Pedro Marcineiro, “Rigor mortis” e tudo uma coisinha de nada estourando a cabeceira do caixão.
• Que foi? Catabi da poxa! Quebrou o caixão?
• Achu qui não, nada! O pano ta todo rasgado e dá pa vê até o cabelo amarelo do Pedo. E as taba do fundo á tudo arrebentada. E milhor arranjá um arame e amarrá o caxão. Si ele saí do caixão num tem home no mundo que bote ele as de novo dento. Eu mesmo num boto.
• Não é melhor amarrar o caixão no para-choque não? Se der outro catabi pelo menos o caixão não cai. Eu ainda acho melhor fazer um jeito de botar uma parte do caixão em cima do carro. O cemitério está perto mas para carregar de mão vai ser fogo. Que é que vocês acham?
• Para mim não faz a menor diferença contanto que termine esta agonia.
• Pra mim faz. Si o caixão caí de novo e cumpade Pedo saí de dentro,como disse, si ele saí nun tem home que bote ele pa dento de novo. Doutô, o sinhô se lembra do que eu lhe disse do negoço da dô de...
• Sei. Zé Miolo; estas dores no braço direito são típicos e ocorrem em todos os casos de enfarte.
• Mais num é da dô de braço quêu tô falando...
• Será que é preciso amarrar mesmo o caixão?
• Peraí. Deixe eu estacionar esse táxi e nós vamos levar o caixão nós três.
• Benza Deus! /
• Com essas taba tudo arrebentada é mió que dois peque na cabecera e o outo pega puros pé. E com cuidado.
• Vamos tentar.
Enquanto isso ia passando o caixão continuava na vertical, uma patética moldura do caos. Provavelmente a decisão de Mlevar o caixão sem o auxilio do táxi fora a mais acertada, mas longe de ser a solução ideal. .
Em virtude da queda e porque o caixão era dos mais baratos, conduzi-lo pelas alças da cabeira estava fora de cogitação. A única solução mesmo era colocar uma pessoa na parte da cabeça, pegando o caixão por baixo, com as duas mãos, e os outros dois pegarem atrás.
• Zé Miolo, você vê se dá para pegar o caixão por baixo com a palma das mãos para trás e olhando para a frente, e nós pegamos aqui pelos pés. Se a gente for devagar chega sem trabalho.
• É o Cemitério de lá ou o de cá?
• E o outo, o veio. U de cá num tem dinheiro qui dê.
• Se pelo menos fosse o de cá...
• Agora é tarde,
• Zé Miolo, você pegue primeiro porque é mais dificil.
• Agora deu o diabo. O pano e as taba ta tudo molhado e eu num sei de que é.
• Não é nada não. Foi a água da chuva...
• Qualé a chuva qui ta cum mais de mês qui num chove? Eu acho é que o Pedo já ta se derretendo...
• Rapaz, acredite. Depois que a pessoa morre tudo que é de líquido no corpo desaparece. Não fica nada.
• Mesmo a pessoa deitada?
• A pessoa deitada também sai quase tudo. Mas se botar de pé não fica nada.
• E purquié isso, doutô?
• Músculos. Os músculos perdem a sua rigidez.
• Eu não sabia nada disso. O senhor é medico?
• Não; adevogado, num é doutô?
• Não; professor universitário.
Depois de muito esforço e de ponderar se o líquido no caixão era ou não era água, partiu o patético féretro em direção ao cemitério.
• Vocêis agüenta aí porque agora eu so paro no cimitero. Pode dá a maió tremura nas mão e eu num paro.
• Eu também não paro. E o doutor agüenta? Que é que professor universitário faz além de dar aulas?
• Carrega caixão de defunto sem dono...
• U negoço da melação agora tá pió. Chega ta iscurregando. Eu tenho pra mim quisso né água não.
• Você sabe onde fica a cova?
1 Dotô, só seio mesmo onde fica u cimitero. A cova é pobrema do covero.
• E se o coveiro não estiver lá.?
• Deve ter alguém lá.
• Num aposte não. Quando a Maria Mão na Opa morreu num teve ninguém pá fazê cova. Nóis mesmo fez.
• Mas hoje tem gente lá.
• O sinhô é o covero?
• Sabe onde ele está?
• Deve ser a do Pedro. Vamos pelo lado de cá que parece ter mais espaço para a gente passar com o caixão. Cuidado para não pisar nas covas novas.
• Eu num posso nem me benz...
• Esa é a cova dum home do Vergel que morreu onte?
• Ontem? E o senhor não disse que tinha sido hoje de madrugada?
• Tem alguém para ajudar a enterrar o homem?
• A gente interra. O pior é passar pur essa ruma de barro na boca da cova.
• Zé, vamos colocar o caixão em cima desse monte de terra desse lado já na
posição certa, depois a gente passa para o outro lado, pega o caixão de novo
e bota na cova.
A cabeça fica pra lá ou pra cá?
Eu acho que é pra cá.
• Eu acho que não faz a menor difernça.
• Pode num fazê pu sinhô mas é mió a gente preguntá pá num interrá o Pedo dismantelado. Eu num gosto de brincá cum esse negoço de morto.
• Eu num disse. É pra cá mesmo.
• Bora interrá o home. Eu já tou cansado mais ainda tenho forgo pá terminá o sirviço.
• Vamos tentar. Vamos pegar os três de uma vez.
• Cuidado, Zé Miolo, Cuidado! Você vai cair na cova! Segure o caixão! Segure! Já era tarde demais. O pobre do Zé Miolo já estava de cara pro ar no fundo da cova com o difunto frio e completamente nu do Pedro Marcineiro por cima dele, e o que restava do humilde caixão, nas mãos dos dois estupefatos e perplexos participantes do enterro mais bizarro do mundo.
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